Ferrovias e o novo ciclo de investimentos: entre autorizações e concessões
As ferrovias brasileiras ocupam um papel histórico no desenvolvimento nacional, mas também carregam uma longa trajetória de desafios. Ao mesmo tempo em que representam eficiência no transporte de grandes volumes de cargas, a rede ferroviária nacional permaneceu, por décadas, limitada em extensão e concentração, voltada sobretudo ao escoamento de commodities agrícolas e minerais.
Com a aprovação da Lei nº 14.273/2021, conhecida como Lei das Ferrovias, o país passou a adotar um regime de autorização como alternativa ao modelo tradicional de concessões. Esse novo marco busca destravar investimentos privados, ampliar a malha ferroviária e reduzir gargalos logísticos, especialmente nos corredores de exportação ligados a portos estratégicos.
Trata-se de mecanismo inovador no ordenamento brasileiro, tendo em vista que, diferentemente das concessões, que dependem de licitação pública, o modelo autoriza diretamente empresas privadas a construir e operar ferrovias mediante simples requerimento ao poder público.
Esse formato confere maior flexibilidade regulatória, reduz burocracias e permite que o setor privado assuma protagonismo na definição de traçados, cronogramas e investimentos. A lógica é semelhante à do setor portuário, no qual terminais de uso privado (TUPs) ganharam espaço significativo após a flexibilização regulatória recente.
No campo ferroviário, a expectativa é que o regime de autorização atraia capital privado para projetos que, no modelo tradicional de concessão, não despertariam interesse imediato ou dependeriam de longos processos licitatórios.
Basta ver que, desde a aprovação da lei, dezenas de requerimentos de autorização foram apresentados por empresas interessadas em implantar trechos ferroviários estratégicos. Esses pedidos refletem o interesse em expandir a malha ferroviária nacional, hoje com cerca de 30 mil quilômetros, mas ainda insuficiente para atender à crescente demanda do setor produtivo.
O foco principal recai sobre o escoamento de commodities agrícolas e minerais, que respondem por mais de 90% do transporte ferroviário no país. Estados como Mato Grosso, Goiás e Pará despontam como polos estratégicos, conectando áreas de produção agrícola e mineral aos portos de Santos (SP), Itaqui (MA) e de Vila do Conde (PA).
Além disso, há expectativa de maior integração entre ferrovias e portos, criando corredores logísticos mais eficientes e competitivos para exportações. A conexão intermodal, envolvendo rodovias e hidrovias, completa esse desenho, permitindo a redução de custos logísticos e a ampliação da competitividade internacional do Brasil.
Entre concessões e autorizações: complementaridade dos modelos
Embora o regime de autorização traga agilidade e flexibilidade, o modelo de concessões permanece fundamental para grandes projetos estruturantes, especialmente aqueles que demandam vultosos investimentos iniciais e prazos longos de maturação.
As concessões, realizadas por meio de licitação, garantem maior previsibilidade ao poder público, ao mesmo tempo em que estabelecem obrigações detalhadas de investimento e manutenção. São, portanto, instrumentos adequados para trechos de alta relevância nacional, onde a segurança regulatória e o planejamento centralizado são indispensáveis.
Nesse sentido, a Lei nº 14.273/2021 não substitui, mas complementa o modelo tradicional. O novo marco cria um sistema híbrido, em que autorizações podem estimular investimentos mais ágeis e localizados, enquanto concessões seguem direcionadas a projetos estruturantes e de maior risco financeiro.
Desafios para consolidar a expansão ferroviária
Apesar do entusiasmo inicial, o novo ciclo de investimentos ferroviários enfrenta desafios consideráveis, nomeadamente:
· Integração logística: garantir que novas ferrovias estejam conectadas de forma eficiente a portos, rodovias e hidrovias, evitando a criação de “ilhas logísticas”.
· Capacidade institucional: assegurar que os órgãos reguladores consigam acompanhar e fiscalizar a multiplicidade de projetos autorizados.
· Coordenação federativa: alinhar interesses da União, estados e municípios, sobretudo no licenciamento ambiental e na desapropriação de áreas.
· Equilíbrio de modelos: definir, com clareza, quais projetos devem seguir via autorização e quais permanecem mais adequados ao regime de concessão.
O novo ciclo ferroviário brasileiro, impulsionado pela Lei nº 14.273/2021, inaugura uma etapa de maior protagonismo do setor privado na expansão da malha. O regime de autorização traz dinamismo, estimula novos empreendimentos e pode contribuir para reduzir gargalos logísticos históricos.
Ao mesmo tempo, o modelo de concessões segue indispensável para grandes corredores estruturantes, configurando um sistema híbrido que combina agilidade e planejamento.
O sucesso dessa agenda dependerá da capacidade de integrar projetos, alinhar os diferentes níveis federativos e garantir segurança regulatória. Se bem conduzido, o país poderá consolidar um novo ciclo ferroviário, capaz de fortalecer e consolidar sua posição como potência agroexportadora e mineral, além de modernizar sua infraestrutura de transporte para o século XXI.





